terça-feira, 15 de fevereiro de 2011



O Literato, Seu Tempo, Seu Espaço  



Nascer e viver em São João Del-Rey bem deve ser uma dádiva dos Céus. A cidade mineira é um belíssimo monumento histórico, toda adornada por igrejas barrocas centenárias e por um casario colonial gracioso que percorre suas ruas estreitas e enladeiradas  num  sobe-e-desce sem fim. Rica em tradições culturais, tem como traços marcantes de sua gente a devoção católica e a paixão pela política e pela artes, em especial pela música.



Foi nesse cenário encantado,  nos  anos  20 e  30  do  século  passado,  que Belisário viveu  a   infância e a juventude, no seio de uma   rígida  e tradicional    família  são-joanense (Fotos 1, 2 e 3) . Embora fosse  estudante aplicado,  primeiro  aluno  do início ao fim dos anos escolares, católico fervoroso, apegado à solidão da leitura e  apaixonado por música erudita,  jamais deixou de apreciar um alegre sarau ou um bom cinema, cinema, aliás, que era também uma de suas paixões e que se ia então firmando como a sétima arte.

Após bacharelar-se em Direito, aos 21 anos, no Rio de Janeiro, retorna em definitivo a sua terra,  tornando-se o mais brilhante advogado de São João Del-Rey.

Foi também, em seu tempo,  o maior  orador da cidade (Foto 4). Seu prestígio  era tanto que dividia com Tancredo Neves (Foto 5) o estrelato na cena política local e o fascínio sobre o povo são-joanense.

E muito embora Belisário vivenciasse uma época e um ambiente marcados por uma religiosidade e um conservadorismo por vezes extremado, ainda assim ele desenvolveu uma personalidade cosmopolita, arejada e tolerante, certamente porque muito lia e muito se informava.

Para que se tenha uma idéia da verdadeira proeza que era tornar-se um liberal na São João Del-Rey dos anos 20 e 30 do século passado, basta citar um fato cotidiano e curioso da cidade naqueles tempos: quando a Igreja Católica se opunha ao conteúdo de um filme em cartaz, ela fazia afixar um aviso na porta do cinema,  com os seguintes dizeres: "Este filme não é recomendado pela Santa Madre Igreja".

Eis aí o ambiente severo que cercava Belisário. Mas graças à sua têmpera liberal, aberta, receptiva ao novo, que soube conciliar magicamente com sua ardorosa religiosidade e seus princípios mais conservadores, é que ele  protagonizou um episódio singular e que tão bem retrata o seu caráter e a sua personalidade.

O grande ator já falecido, Procópio Ferreira, enfrentava uma séria dificuldade naqueles anos: matricular a filha - futura estrela, Bibi Ferreira -  em um bom educandário, tal era o preconceito em relação ao meio teatral. E aí entra em cena Belisário. Graças ao seu prestígio e à sua intercessão, Procópio obtém a matrícula de Bibi em prestigiosa instituição de ensino de São João Del-Rey. O notável ator foi-lhe eternamente grato, tornando-se seu grande amigo. Graças a Belisário, Procópio encenou vários de seus grandes sucessos na cidade. 

Assim era e assim  foi  Belisário vida afora.  Apegado, sim,  às tradições e  a  uma religiosidade ardorosa, que impregnava tanto o seu cotidiano  quanto a  sua cosmovisão.  Mas tolerante e aberto  a tudo que julgava bom, mesmo que se opusesse às suas mais caras convicções. Um legítimo devoto de Voltaire, no aceitar o "outro" antagônico, mas também de Pasteur, no conciliar religiosidade e ciência.  E, por isso mesmo, quase um mecenas, um promotor e incentivador apaixonado das artes em sua terra.

E assim também era o autor da literatura inédita que queremos apresentar aqui: um observador atento, sensível, que lança um olhar ora conservador, ora místico, ora filosófico – mas sempre encantador  – sobre o mundo à sua volta. 

O que mais afligirá, porém, aos que vierem a ler Belisário, sobretudo aos que o conheceram de perto,  é a instantânea certeza de que aqueles escritos brilhantes seriam apenas o prenúncio de uma vasta obra literária, a ser incessantemente produzida e aperfeiçoada  ao longo de toda uma vida. Mas não. O  grande advogado matou prematuramente o grande escritor.   

Ainda assim, o literato Belisário, tão reprimido pelo grande advogado Belisário,  alcança uma produção brilhante. Ao leitor desavisado encantarão, entre os muitos escritos, os versos adolescentes, concebidos entre os 15 e os 17 anos.

Exemplar impressionante daqueles verdes anos é a quadra que finaliza o primoroso poema “TÉDIO”, de  janeiro de 1928, quando então  o autor contava com apenas 16 anos. São versos perturbadores, que encerram reflexão,  inquietação e angústia surpreendentemente adultas:

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"Tédio! satisfação dos bens terrenos,
Satisfação completa e dolorida...
Ou antes, o actuar de íntimos venenos,
Aspiração do que não há na vida!..."

                                  
Não são raros, portanto, os momentos em que um  Belisário ainda infante  beira a perfeição bilaquiana, porque bilaquianas são a suavidade melódica, a métrica rigorosa e a densidade reflexiva que alcança a poética de seus verdes anos.

Aliás, é nessa fase encantada, quando os grandes literatos dão os primeiros passos, que vamos encontrar Belisário vivendo um certo embate interior: de um lado, o religioso, o místico; de outro, o adolescente  precoce, culto e sábio, familiarizado com as maravilhas científicas. "TÉDIO" é composição que já nos traz um Belisário a quem a religião e a fé, em dado momento, não socorrem. O tédio que o invade no poema não é atribuído a uma provação dos Céus. Ao revés, o autor indaga, implacavelmente lógico, as razões que podem, por vezes, levar ao enfado ou à melancolia .

Ele ainda põe a fé à parte,  ou quase se contrapõe a ela,  no amargo  "INCERTEZA", de 1928:
  
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"A morte, esse mysterio tão profundo...
Depois dos soffrimentos deste mundo,
Que nos reserva na outra vida a sorte?...
"
............................................................

"Que somos, donde viemos, aonde vamos?...
Em vão corremos do saber os ramos,

Nessa ansia eterna do desconhecido...

Às nossas dores quem dará ouvido?...
O homem blasphemará nas trevas: fére-o
A certeza cruciante do mystério!..."


Note-se que  ali não há o socorro da fé. Ao contrário, emana dos versos uma    sensação de orfandade e desamparo em face do Universo indecifrável e da finitude da vida. Nesse seu lúgubre "INCERTEZA", encontramos um Belisário pouco presente ao longo de sua literatura:  um Belisário rebelado, quase blasfemo, a quem a fé momentaneamente não satisfaz nem consola.

Mas finalmente, em "JUDAS", Belisário retorna ao regaço místico, que será sempre o porto seguro de suas angústias vida afora. Ressalte-se que os três poemas citados, todos de 1928, aparecem em sequência nos seus manuscritos, como que a apontar o triunfo final do Belisário místico, do Belisário fervorosamente católico:


"Repellido por todos, desvairado,
No desespero de um remorso atroz,
Judas ouviu da consciência a voz,
Que lhe apontava o horror de seu pecado!

Olhar sem brilho, rosto transtornado,
Não conseguiu jamais estar a sós...
Via elle em tudo a sua ação feroz:
O espectro de Jesus crucificado!..."
.......................................................

Nos  seus textos, enfim, vislumbra-se um extraordinário talento literário. Os belos poemas, as inspiradas reflexões, orações, crônicas, contos, discursos, panegíricos cristalizam-se para sempre na misteriosa, intangível dimensão das vocações interrompidas, das grandes obras inacabadas.

Em verdade,  o imenso potencial literário de Belisário só se concretiza em definitivo, com toda força e plenitude, na mente e no coração dos que o conheceram e o amaram. 


Antônio Oswaldo Castro Leite de Andrade


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NOTAS  DO  COMPILADOR

► Parte considerável  da  literatura do autor foi produzida antes da reforma ortográfica dos anos 1940, razão pela qual procuramos manter, para aquele segmento da sua obra, a grafia da época. O leitor encontrará palavras como "ancia",  grafada com a a letra "c", e outras como "maximo",  grafada sem o acento indicador   de proparoxitonia,  ou ainda "affecto", grafada com consoantes dobradas e com o "c" que antecedia muitas sílabas iniciadas por "t", além de inúmeras outras formas  que podem   causar  estranheza  ou  ser  interpretadas como erro de digitação.  No  entanto, assim procedendo, tentamos proporcionar ao leitor algo como uma sensação de recuo no tempo,  tendo em vista a época em que os documentos foram produzidos.

► No segmento poético da obra,  predominam as regras severas da versificação acadêmica: métrica, rimas, estrofes etc. Sendo assim, toda vez que o título de um poema apresentar entre parênteses as iniciais "NC", o leitor terá, ao pé daquele poema, a título de curiosidade, notas explicativas deste compilador sobre a estrutura dos versos que, em sua forma rígida, apresentam certa complexidade, o que revela  uma grande  intimidade do autor com as escolas clássicas da poesia lusófona.

► A assinalação "NC" também estará presente junto ao título de qualquer texto que necessite algum esclarecimento.  Trechos de texto substituídos pelo  autor em seus rascunhos e manuscritos figuram "riscados" (tachados), próximo ao texto que prevaleceu.

► A assinalação "Foto" indica, como já foi possível perceber, que há uma foto ou qualquer imagem relacionada ao texto. Ela surge  em fundo azul claro, sempre seguida de um número.  Por exemplo: "Foto 5". Esta assinalação é um link  que, quando clicado, conduz a uma postagem de imagens. Nesta postagem, as imagens encontram-se enfileiradas verticalmente, em ordem numérica crescente. Basta localizar a foto pelo número. Os que quiserem ver apenas fotos devem descer até o final desta página e clicar no link "postagens mais antigas". 

► Estamos cientes de que o blog,  veículo de poucos recursos técnicos, não é o mais adequado ao conteúdo aqui contido e disponibilizado, sendo um site o melhor meio, para o qual migraremos em breve. Mas o blog é ágil, de fácil criação, edição, atualização e sobretudo interatividade com o leitor,  através dos links "comentários",  por meio do quais o visitante poderá deixar suas sugestões e impressões.

► Esse  é  um  espaço  em  início  de construção e será, com certeza, um espaço em permanente construção.   Destina-se,   sobretudo, a amigos, familiares,  admiradores  de  Belisário  e a todos que possam colaborar conosco, através de sugestões, críticas e, principalmente, através do encaminhamento de  textos de autoria do homenageado, além de  fotos pertinentes,  que porventura desconheçamos.  

► A obra do autor - quase toda inédita - apresenta considerável volume. Sendo assim, a nossa prioridade foi perseguir a disponibilização de uma quantidade minimamente apreciável de toda a sua produção, uma vez que esse sítio somente começou a ser confeccionado em fevereiro de 2011 quando, subitamente, nos demos conta de que estávamos em pleno ano do centenário do autor. E queríamos cumprir nossa meta antes que se completassem os cem anos de seu nascimento, em 31 de março de 2011, para que a partir de então divulgássemos o blog, como forma de homenageá-lo. Assim, tendo em vista que dispúnhamos de menos de dois meses e que contávamos somente com a nossa solitária digitação, cremos ter atingido razoavelmente o objetivo, ainda que com prejuízo visual, estético e técnico, em virtude de  limitações na diagramação,  formatação e "linkagem", limitações típicas de um blog.

A.O.C.L.A.

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"Encontro-me numa idade e numa fase da vida em que já se encerra tudo  sub especie aeternitatis (NC) . Não me preocupam nem me atraem os resultados diretos e imediatos ou os êxitos brilhantes e efêmeros". 
                                                                                                     
     ( Foto 6                                              Belisário Leite de Andrade Neto


NECROLÓGIO

"Belisário Leite de Andrade Neto, 66 anos, no Hospital Pedro Ernesto. Mineiro de São João Del-Rey, era vice-presidente do Conselho de Contas do Município do Rio de Janeiro. Advogado, formou-se pela Universidade do Rio de Janeiro em 1932, voltando para sua cidade, onde viveu até 1953. Membro do Instituto dos Advogados do Brasil, foi assistente jurídico do Ministério da Justiça em 1953 e, no ano seguinte, Diretor da Divisão de Interior e Justiça. Foi assistente do Ministério da Justiça no Amazonas, quando da criação do Estado do Acre, e integrou a comissão encarregada de elaborar a Lei Orgânica dos Territórios, sendo assessor do Ministro Gama e Silva em 1967. Jornalista, colaborou em diversos jornais de São João Del-Rey e no suplemento literário de O JORNAL. Era detentor das medalhas do Centenário de Nascimento do Marechal Caetano de Faria, Hermes da Fonseca, Taumaturgo de Azevedo e Clovis Bevilacqua. Casado com  Lélia Castro Leite de Andrade (Foto 7), tinha três filhos: a advogada Ângela Maria Castro Leite de Andrade, o advogado Antônio Oswaldo Castro Leite de Andrade e o universitário Belisário Henrique Castro Leite de Andrade" (Foto 8 ) (necrológio publicado no JORNAL DO BRASIL (Foto 9), edição de 08.07.1977, na coluna Falecimentos, página 24).

N.C. "sub especie aeternitatis" é expressão cunhada em latim por Espinosa, que significa "do ponto de vista da eternidade", "na perspectiva da eternidade".

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