terça-feira, 15 de fevereiro de 2011



O Literato, Seu Tempo, Seu Espaço  



Nascer e viver em São João Del-Rey bem deve ser uma dádiva dos Céus. A cidade mineira é um belíssimo monumento histórico, toda adornada por igrejas barrocas centenárias e por um casario colonial gracioso que percorre suas ruas estreitas e enladeiradas  num  sobe-e-desce sem fim. Rica em tradições culturais, tem como traços marcantes de sua gente a devoção católica e a paixão pela política e pela artes, em especial pela música.



Foi nesse cenário encantado,  nos  anos  20 e  30  do  século  passado,  que Belisário viveu  a   infância e a juventude, no seio de uma   rígida  e tradicional    família  são-joanense (Fotos 1, 2 e 3) . Embora fosse  estudante aplicado,  primeiro  aluno  do início ao fim dos anos escolares, católico fervoroso, apegado à solidão da leitura e  apaixonado por música erudita,  jamais deixou de apreciar um alegre sarau ou um bom cinema, cinema, aliás, que era também uma de suas paixões e que se ia então firmando como a sétima arte.

Após bacharelar-se em Direito, aos 21 anos, no Rio de Janeiro, retorna em definitivo a sua terra,  tornando-se o mais brilhante advogado de São João Del-Rey.

Foi também, em seu tempo,  o maior  orador da cidade (Foto 4). Seu prestígio  era tanto que dividia com Tancredo Neves (Foto 5) o estrelato na cena política local e o fascínio sobre o povo são-joanense.

E muito embora Belisário vivenciasse uma época e um ambiente marcados por uma religiosidade e um conservadorismo por vezes extremado, ainda assim ele desenvolveu uma personalidade cosmopolita, arejada e tolerante, certamente porque muito lia e muito se informava.

Para que se tenha uma idéia da verdadeira proeza que era tornar-se um liberal na São João Del-Rey dos anos 20 e 30 do século passado, basta citar um fato cotidiano e curioso da cidade naqueles tempos: quando a Igreja Católica se opunha ao conteúdo de um filme em cartaz, ela fazia afixar um aviso na porta do cinema,  com os seguintes dizeres: "Este filme não é recomendado pela Santa Madre Igreja".

Eis aí o ambiente severo que cercava Belisário. Mas graças à sua têmpera liberal, aberta, receptiva ao novo, que soube conciliar magicamente com sua ardorosa religiosidade e seus princípios mais conservadores, é que ele  protagonizou um episódio singular e que tão bem retrata o seu caráter e a sua personalidade.

O grande ator já falecido, Procópio Ferreira, enfrentava uma séria dificuldade naqueles anos: matricular a filha - futura estrela, Bibi Ferreira -  em um bom educandário, tal era o preconceito em relação ao meio teatral. E aí entra em cena Belisário. Graças ao seu prestígio e à sua intercessão, Procópio obtém a matrícula de Bibi em prestigiosa instituição de ensino de São João Del-Rey. O notável ator foi-lhe eternamente grato, tornando-se seu grande amigo. Graças a Belisário, Procópio encenou vários de seus grandes sucessos na cidade. 

Assim era e assim  foi  Belisário vida afora.  Apegado, sim,  às tradições e  a  uma religiosidade ardorosa, que impregnava tanto o seu cotidiano  quanto a  sua cosmovisão.  Mas tolerante e aberto  a tudo que julgava bom, mesmo que se opusesse às suas mais caras convicções. Um legítimo devoto de Voltaire, no aceitar o "outro" antagônico, mas também de Pasteur, no conciliar religiosidade e ciência.  E, por isso mesmo, quase um mecenas, um promotor e incentivador apaixonado das artes em sua terra.

E assim também era o autor da literatura inédita que queremos apresentar aqui: um observador atento, sensível, que lança um olhar ora conservador, ora místico, ora filosófico – mas sempre encantador  – sobre o mundo à sua volta. 

O que mais afligirá, porém, aos que vierem a ler Belisário, sobretudo aos que o conheceram de perto,  é a instantânea certeza de que aqueles escritos brilhantes seriam apenas o prenúncio de uma vasta obra literária, a ser incessantemente produzida e aperfeiçoada  ao longo de toda uma vida. Mas não. O  grande advogado matou prematuramente o grande escritor.   

Ainda assim, o literato Belisário, tão reprimido pelo grande advogado Belisário,  alcança uma produção brilhante. Ao leitor desavisado encantarão, entre os muitos escritos, os versos adolescentes, concebidos entre os 15 e os 17 anos.

Exemplar impressionante daqueles verdes anos é a quadra que finaliza o primoroso poema “TÉDIO”, de  janeiro de 1928, quando então  o autor contava com apenas 16 anos. São versos perturbadores, que encerram reflexão,  inquietação e angústia surpreendentemente adultas:

........................................................

"Tédio! satisfação dos bens terrenos,
Satisfação completa e dolorida...
Ou antes, o actuar de íntimos venenos,
Aspiração do que não há na vida!..."

                                  
Não são raros, portanto, os momentos em que um  Belisário ainda infante  beira a perfeição bilaquiana, porque bilaquianas são a suavidade melódica, a métrica rigorosa e a densidade reflexiva que alcança a poética de seus verdes anos.

Aliás, é nessa fase encantada, quando os grandes literatos dão os primeiros passos, que vamos encontrar Belisário vivendo um certo embate interior: de um lado, o religioso, o místico; de outro, o adolescente  precoce, culto e sábio, familiarizado com as maravilhas científicas. "TÉDIO" é composição que já nos traz um Belisário a quem a religião e a fé, em dado momento, não socorrem. O tédio que o invade no poema não é atribuído a uma provação dos Céus. Ao revés, o autor indaga, implacavelmente lógico, as razões que podem, por vezes, levar ao enfado ou à melancolia .

Ele ainda põe a fé à parte,  ou quase se contrapõe a ela,  no amargo  "INCERTEZA", de 1928:
  
..............................................................

"A morte, esse mysterio tão profundo...
Depois dos soffrimentos deste mundo,
Que nos reserva na outra vida a sorte?...
"
............................................................

"Que somos, donde viemos, aonde vamos?...
Em vão corremos do saber os ramos,

Nessa ansia eterna do desconhecido...

Às nossas dores quem dará ouvido?...
O homem blasphemará nas trevas: fére-o
A certeza cruciante do mystério!..."


Note-se que  ali não há o socorro da fé. Ao contrário, emana dos versos uma    sensação de orfandade e desamparo em face do Universo indecifrável e da finitude da vida. Nesse seu lúgubre "INCERTEZA", encontramos um Belisário pouco presente ao longo de sua literatura:  um Belisário rebelado, quase blasfemo, a quem a fé momentaneamente não satisfaz nem consola.

Mas finalmente, em "JUDAS", Belisário retorna ao regaço místico, que será sempre o porto seguro de suas angústias vida afora. Ressalte-se que os três poemas citados, todos de 1928, aparecem em sequência nos seus manuscritos, como que a apontar o triunfo final do Belisário místico, do Belisário fervorosamente católico:


"Repellido por todos, desvairado,
No desespero de um remorso atroz,
Judas ouviu da consciência a voz,
Que lhe apontava o horror de seu pecado!

Olhar sem brilho, rosto transtornado,
Não conseguiu jamais estar a sós...
Via elle em tudo a sua ação feroz:
O espectro de Jesus crucificado!..."
.......................................................

Nos  seus textos, enfim, vislumbra-se um extraordinário talento literário. Os belos poemas, as inspiradas reflexões, orações, crônicas, contos, discursos, panegíricos cristalizam-se para sempre na misteriosa, intangível dimensão das vocações interrompidas, das grandes obras inacabadas.

Em verdade,  o imenso potencial literário de Belisário só se concretiza em definitivo, com toda força e plenitude, na mente e no coração dos que o conheceram e o amaram. 


Antônio Oswaldo Castro Leite de Andrade


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NOTAS  DO  COMPILADOR

► Parte considerável  da  literatura do autor foi produzida antes da reforma ortográfica dos anos 1940, razão pela qual procuramos manter, para aquele segmento da sua obra, a grafia da época. O leitor encontrará palavras como "ancia",  grafada com a a letra "c", e outras como "maximo",  grafada sem o acento indicador   de proparoxitonia,  ou ainda "affecto", grafada com consoantes dobradas e com o "c" que antecedia muitas sílabas iniciadas por "t", além de inúmeras outras formas  que podem   causar  estranheza  ou  ser  interpretadas como erro de digitação.  No  entanto, assim procedendo, tentamos proporcionar ao leitor algo como uma sensação de recuo no tempo,  tendo em vista a época em que os documentos foram produzidos.

► No segmento poético da obra,  predominam as regras severas da versificação acadêmica: métrica, rimas, estrofes etc. Sendo assim, toda vez que o título de um poema apresentar entre parênteses as iniciais "NC", o leitor terá, ao pé daquele poema, a título de curiosidade, notas explicativas deste compilador sobre a estrutura dos versos que, em sua forma rígida, apresentam certa complexidade, o que revela  uma grande  intimidade do autor com as escolas clássicas da poesia lusófona.

► A assinalação "NC" também estará presente junto ao título de qualquer texto que necessite algum esclarecimento.  Trechos de texto substituídos pelo  autor em seus rascunhos e manuscritos figuram "riscados" (tachados), próximo ao texto que prevaleceu.

► A assinalação "Foto" indica, como já foi possível perceber, que há uma foto ou qualquer imagem relacionada ao texto. Ela surge  em fundo azul claro, sempre seguida de um número.  Por exemplo: "Foto 5". Esta assinalação é um link  que, quando clicado, conduz a uma postagem de imagens. Nesta postagem, as imagens encontram-se enfileiradas verticalmente, em ordem numérica crescente. Basta localizar a foto pelo número. Os que quiserem ver apenas fotos devem descer até o final desta página e clicar no link "postagens mais antigas". 

► Estamos cientes de que o blog,  veículo de poucos recursos técnicos, não é o mais adequado ao conteúdo aqui contido e disponibilizado, sendo um site o melhor meio, para o qual migraremos em breve. Mas o blog é ágil, de fácil criação, edição, atualização e sobretudo interatividade com o leitor,  através dos links "comentários",  por meio do quais o visitante poderá deixar suas sugestões e impressões.

► Esse  é  um  espaço  em  início  de construção e será, com certeza, um espaço em permanente construção.   Destina-se,   sobretudo, a amigos, familiares,  admiradores  de  Belisário  e a todos que possam colaborar conosco, através de sugestões, críticas e, principalmente, através do encaminhamento de  textos de autoria do homenageado, além de  fotos pertinentes,  que porventura desconheçamos.  

► A obra do autor - quase toda inédita - apresenta considerável volume. Sendo assim, a nossa prioridade foi perseguir a disponibilização de uma quantidade minimamente apreciável de toda a sua produção, uma vez que esse sítio somente começou a ser confeccionado em fevereiro de 2011 quando, subitamente, nos demos conta de que estávamos em pleno ano do centenário do autor. E queríamos cumprir nossa meta antes que se completassem os cem anos de seu nascimento, em 31 de março de 2011, para que a partir de então divulgássemos o blog, como forma de homenageá-lo. Assim, tendo em vista que dispúnhamos de menos de dois meses e que contávamos somente com a nossa solitária digitação, cremos ter atingido razoavelmente o objetivo, ainda que com prejuízo visual, estético e técnico, em virtude de  limitações na diagramação,  formatação e "linkagem", limitações típicas de um blog.

A.O.C.L.A.

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"Encontro-me numa idade e numa fase da vida em que já se encerra tudo  sub especie aeternitatis (NC) . Não me preocupam nem me atraem os resultados diretos e imediatos ou os êxitos brilhantes e efêmeros". 
                                                                                                     
     ( Foto 6                                              Belisário Leite de Andrade Neto


NECROLÓGIO

"Belisário Leite de Andrade Neto, 66 anos, no Hospital Pedro Ernesto. Mineiro de São João Del-Rey, era vice-presidente do Conselho de Contas do Município do Rio de Janeiro. Advogado, formou-se pela Universidade do Rio de Janeiro em 1932, voltando para sua cidade, onde viveu até 1953. Membro do Instituto dos Advogados do Brasil, foi assistente jurídico do Ministério da Justiça em 1953 e, no ano seguinte, Diretor da Divisão de Interior e Justiça. Foi assistente do Ministério da Justiça no Amazonas, quando da criação do Estado do Acre, e integrou a comissão encarregada de elaborar a Lei Orgânica dos Territórios, sendo assessor do Ministro Gama e Silva em 1967. Jornalista, colaborou em diversos jornais de São João Del-Rey e no suplemento literário de O JORNAL. Era detentor das medalhas do Centenário de Nascimento do Marechal Caetano de Faria, Hermes da Fonseca, Taumaturgo de Azevedo e Clovis Bevilacqua. Casado com  Lélia Castro Leite de Andrade (Foto 7), tinha três filhos: a advogada Ângela Maria Castro Leite de Andrade, o advogado Antônio Oswaldo Castro Leite de Andrade e o universitário Belisário Henrique Castro Leite de Andrade" (Foto 8 ) (necrológio publicado no JORNAL DO BRASIL (Foto 9), edição de 08.07.1977, na coluna Falecimentos, página 24).

N.C. "sub especie aeternitatis" é expressão cunhada em latim por Espinosa, que significa "do ponto de vista da eternidade", "na perspectiva da eternidade".



   Belisário Leite de Andrade Neto    
   Escritos  

O autor, em 1932, aos 21 anos, 
em foto clássica de formatura



                                                                  



O POETA




LYRISMO ADOLESCENTE
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CHROMO

Terminou a missa. Os sinos
Binbalham festivamente
E uma alegria innocente
Brilha em rostinhos divinos


Passa um grupo de meninos
A correr lepidamente
Pondo a creada impaciente,
Saltando como felinos...


Surgem algumas mocinhas,
Descuidosas pela vida
Palrando sobre "coisinhas"...

Eis vejo uma:  - "vim, querida,
 Ver-te, sabendo que vinhas"...
Oh! Que missa e que sahida... 




30.05.927


(16 anos)

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CONSELHOS DE UMA VÓ A SUA NETA


"De lágrimas, um mar
É sem dúvida a vida,
Que passamos, querida,
A chorar... A chorar...

Quando se vem a amar
Quanta cousa soffrida,
Contrariedade tida,
Isto me faz lembrar!..

Não ames, filha minha...
Fecha teu coração
Ao amor..." Diz a vozinha,

Querendo, mas em vão,
Não deixar a netinha
Ter tal desilusão...  


Dezembro de 926



(15 anos)
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PALAVRAS DE UM BEBERRÃO

Partiste desta vida,
Para sempre partiste
Deixando-me, ó querida,
Abandonado e triste.

Foi grande a mágua tida
Por aquelle que viste
Infeliz, sem guarida,
E, amando-o, redimiste.

Morreste e o desgraçado,
Eu, sem ti, desprezado,
Descrente, nada forte...

Volto ao vício horrendo...
E ficarei bebendo
Até chegar a morte...


Dezembro de 926



(15 anos)


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CARNAVAL


Carnaval! Carnaval! És tu que imperas

No mundo inteiro, mundo de chimeras,
Nesses três dias em que não fulgura
A razão, a innocência, mas loucura,
Loucura só, loucura desvairada
E que domina os homens... Desgraçada
Humanidade!.. Mais que impuro, mais
Que immundo é o pélago no qual te vaes
Mergulhar - nesse pélago de orgias,
De prazeres sensuais que são os dias
Do reinado de Vênus e de Bacho!..
Tudo é amor, amor carnal!.. Estaco
Attonito, offegante e - horror! - contemplo
Não, é certo, o interior calmo de um templo,
E tão sublime, mas um mar revolto...
E, olhos cerrados, pensamento solto,
Vejo a immensa tragédia... A turbamulta
Freme, delira... Louco infrene avulta
O prazer... O infernal "jazz" ensurdece...
O ether embriaga... E o álcool embrutece...
O homem torna-se como que uma fera...
É o carnaval, o carnaval que impera!..


26.2.927



(15 anos)

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A MINHA MUSA


Procuro a inspiração, quando componho,
Nas divinas bellezas naturaes.
Cerrando os olhos, num formoso sonho,
Harmonias descubro, e sem iguaes,


No gorgeio das aves - trovadores
Do azul, na brisa que cicia e afaga,
Nos rios, que lamentam sua dores
A rolar, a rolar de vaga em vaga...


Nos sorrisos da aurora, na alegria
Dessas manhãs tão claras e orvalhadas,
E nas tardes, já quando morre o dia,
Melancholicamente desmaiadas...


E na noite que aos poucos se constella
Em milhões e milhões de estrelas - olhos
De Deus, de luz tão scintillante e bela,
Que nos perscrutam os íntimos refolhos...


Na claridade pálida da lua,
Pastor do firmamento que, suave,
Mais suave que um võo plácido de ave,
Ethereamente, na amplidão fluctua...


No mar que brame e espuma ferozmente,
E, em vagalhões e vagalhões uivando,
Estorcendo-se horrível, em desmando,
Personifica a cólera impotente.


E nas flores, que são a graça, o encanto
Da natureza, as flores, cujo aroma
Que brota docemente dentre a coma,
Nos delicia, nos embriaga tanto...


Flores da natureza ou flores dalma,
Que vicejas na terra ou em corações,
Ah!.. personificaes as ilusões
Dessa quadras gentis, cheias de calma...

                  -
                -   - 
Por toda a  parte, pela natureza,
Vejo um reflexo da Immortal Belleza.

                  -
               -    -

Filhas da Natureza, a Arte, a Poesia,
Num surto ardente, ideal, de phantasia,
Glorificando a vida, o belo, o Amor,
O balsamo serão, consolador,
Da triste humanidade que se agita
No mundo, cega, desvairada, afflicta!..


927


(16 anos)

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MINHA MUSA  (Outra Versão)                   

Procuro inspiração, quando componho,
Nas divinas bellezas naturaes.
Cerrando os olhos, num formoso sonho,
Harmonias descubro, sem iguaes,

No gorjeio das aves, no tristonho
Agonizar do dia - nesses ais,
Nas lágrimas de sangue que deponho
Nas nuvens esbraseadas, vesperaes.

Vejo risos na aurora... A voz dos ventos
É um choro convulsivo... O rumorejo
Dos rios são cantigas e lamentos...

Enfim, muita poesia e encanto vejo
Por toda parte pela Natureza
- Num templo augusto de Arte e de belleza!..

24-6-927

(16 anos)

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EXALTAÇÃO

Desencadeia-se a procella... A mente,
Sinto-a em cahos, em revolto cataclysmo.
São scenas de um horror dantescamente
Tragico, violento, em que me abysmo...

E a fronte ardente, delirante scismo...
Tumultuam idéias em torrente,
Refervem pensamentos loucamente,
Enfim, um turbilhão, um cataclysmo.

São collisões phantásticas... Cidades
Que se arrazam, cyclopicos, profundos
Choques que abalam e esphacelam mundos!..

Sinto no espirito ancias insoffridas,
Em meu cérebro rugem tempestades,
Na minha agitam-se milhões de vidas!..

Janeiro de 928

(16 anos)
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EMPRESTANDO BILAC...

Leia, mas com olhos serenos,
As poesias de Bilac,
Poeta cheio de ardor.
E si, pequenina Venus,
Algumas destaques,
Assinale-as com uma flor...

...RECEBENDO O LIVRO EMPRESTADO

Versos por ti escolhidos...
Serão estes os mais bellos,
Harmoniosos e divinos,
E ser-me-ão os mais queridos,
Porque neles penso vê-los
Os teus risos crystallinos...

927

(16 anos)

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VERSOS DE FELICIDADE

O céu azul apenas é velado
Por um sendal de nuvens transparente.
Minha alma está azul inteiramente,
E de um azul risonho e avelludado...

Azul d'alma mais lindo que o do céo!..
Nuvens talvez maculem muito breve
Tão puro azul em que nem o mais leve
Vestigio há de tristeza, ou tenue véo.

Uma felicidade e uma alegria
Envolvem-me suaves, cariciosas,
Num perfume suavíssimo de rosas...
Sinto no interior doce melodia...

Qual a causa de toda essa bonança?..
É que vim, escutae, de vê-la e ouvi-la,
E minha alma ficou então tranquilla:
Ama-me - é ella própria quem o afiança...

Talvez seja mentira... Pouco importa,
Si essa mentira é toda a minha vida,
Causa-me uma doçura indefinida,
E, inda mais,  me embriaga e me transporta...

A verdade é fictícia e impalpável...
E há, por acaso, alguém que não prefira
A uma verdade má, doce mentira?
Pois mentir é viver, e ella é adoravel...

Ouço os sons de uma música divina...
É a orchestra interior que freme e vibra,
E por todo o meu corpo, fibra a fibra,
Se espalha a sinphonia que fascina...

São os acordes da felicidade,
Da alegria, do amor e da ventura.
Uma força interior me transfigura,
Invade-me radiosa claridade...

Agora rolam pelo céo manchado
Nuvens sombrias, tenebrosamente...
Minha alma continua inteiramente
Azul, dum azul risonho e avelludado...

Janeiro, 928

(16 anos)

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TÉDIO

Chove lá fora. A noite é fria, escura.
A sombra da tristeza envolve tudo.
A Natureza cheia de amargura,
Põe-me também como que triste e mudo...

Pingos de chuva - lágrimas do céo,
Batem-me na janella... Que abandono,
Que solidão, o pensamento ao léo...
Por que não tenho ao menos somno?...

Ah! Quizera dormir... Dormir... Sonhar...
Pois dormir é  morrer pela metade...
As palpebras cerrando devagar,
Vem então a inconsciência e nos invade...

Que doce cousa estar inconsciente,
Não sentir desta vida o desconforto,
A cabeça cair pesadamente,
Estar ao mesmo tempo vivo e morto!...

Pairar entre os abysmos vida e morte!...
Em um, um turbilhão, a luta, o inferno,
Num titânico campo de Mavorte;
No outro o repouso, o esquecimento eterno...

Mas não, não durmo... O somno é traiçoeiro,
Pois quando a gente o quer ele não vem...
E vem risonho, lépido o matreiro,
Quando fugir se lhe procura alguem...

Tento ler, mas embalde, alguma cousa.
Não me atrai a leitura, e me aborreço.
Ah! Minha alma, volúvel mariposa...
E lá se vae o livro num arremeço...


Que solidão, que horror estar sozinho!...
Amo o barulho, o movimento, a vida
Agitada, o trabalho, o borborinho...
A solidão me aterra e me intimida.


O que, aliás, não me impede que me isole
Por vezes, em profunda reflexão,
Com Machado de Assis ou com Anatole,
Mas agora é forçada reclusão...


Lá fora a chuva continua fria...
E na minha alma se reflete a dor
Que ha numa noite tétrica, sombria,
Em que tudo parece ameaçador...


Uma tristeza indefinível, vaga,
De mim se apossa... Que profunda magua!...
No coração uma ulcerante chaga,
E dos olhos escorrem fios d´agua...


A dor que me consome é bem cruel,
Soffro de um mal talvez que sem remédio,
De uma cousa que amarga como o fel,
Trevosa como a noite, que é: o tédio!...


Tédio! Satisfação dos bens terrenos,
Satisfação completa e dolorida...
Ou antes, o actuar de intimos venenos,
Aspiração do que não há na vida!...


Janeiro, 928


(16 anos)




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MINHA VÓ


Minha avó é uma trêmula velhinha,
Que tenho na maior veneração;
Está tão trôpega que só caminha
Fortemente amparada a um bordão...


Sua cabeça é branca como a neve,
O olhar de uma doçura indefinida,
A sua voz tão fraca, suave, leve...
Parece estar cansada desta vida...


Ella também já tem soffrido tanto!...
E por aquellas faces descarnadas,
Ah! Já correu amargurado pranto,
Que as deixou pallidas e maceradas...


É sulcado de rugas o seu rosto
Que outrora foi tão alvo e assetinado.
E cada ruga é um íntimo desgosto
Que o coração lhe trouxe amargurado.


Quando a vejo sorrir bondosamente
Às travessuras dos meus queridos manos,
Ou então contar-lhes inconscientemente
A historia de seus próprios desenganos;


Quando a vejo, olhos humidos, lembrando
Com certeza um passado mui distante,
Numa illusão desfeita recordando,
Entristecido o pallido semblante,


Penso quão rapida e fugaz é a vida:
Apenas trapos de felicidade,
Uma esperança uma ilusão querida...
Depois... depois a triste realidade...


Minha vó é uma tremula velhinha,
Que tenho na maior veneração,
Está tão tropega que só caminha
Firmemente amparada a um bordão...


Abril, 928


(17 anos)


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INCERTEZA  (DESALENTO DE UM VELHO)


Ah! Estou velho e se aproxima a morte,
A morte, esse mysterio tão profundo...
Depois dos soffrimentos deste mundo,
Que nos reserva na outra vida a sorte?...


Ninguém o sabe: teme-o o fraco e o forte,
E todos nós sentimos bem no fundo,
Sem que nada em tal transe nos conforte,
Que a carne ha de roê-la o verme immundo...


Que somos, donde viemos, aonde vamos?...
Em vão corremos do saber os ramos,
Nessa ansia eterna do desconhecido...


Às nossas dores quem dará ouvido?...
O homem blasphemará nas trevas: fére-o
A certeza cruciante do mystério!...


928


(17 anos)


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RUINAS...


Nesses lugares hoje abandonados,
Nesses lugares tristes, silenciosos,
Onde ha agora muros derrocados,
Houve outrora palácios sunptuosos...


E esses templos, sombrios, arruinados,
Foram em outras éras majestosos...
E nesses subterrâneos desabados,
Se encerram thezouros fabulosos...


Resta hoje das ruinas o esplendor,
A nos encher de indefinivel dor...
Também erguiam-se em minha alma, outrora,


Palácios de illusões, templos de sonhos...
E, no entretanto, o que é que resta agora?
Montões de escombros, lugubres, medonhos...


928


(17 anos)


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JUDAS


Repellido por todos, desvairado,
No desespero de um remorso atroz,
Judas ouviu da consciência a voz,
Que lhe apontava o horror de seu pecado!


Olhar sem brilho, rosto transtornado,
Não conseguiu jamais estar a sós...
Via elle em tudo a sua ação feroz:
O espectro de Jesus crucificado!...


Vendêra o Mestre e desde esse momento
Constituira-se réo de um crime odiento,
Para o qual não havia absolvição!


Judas enforca-se sem contricção:
Era seu corpo a baloiçar ao vento
A imagem do remorso e da afflição!...


30-6-928


(17 anos)


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Ao amigo Paulo, que se vê sob a imminência de uma "bomba" em Direito Romano.




A esse Cícero, cara de carrasco,
Sinistro olhar, diabolico sorriso,
Não olho com doçura nem com asco...
E entre injuria-lo ou não, fico indeciso...


Às vezes contra ele diatribes masco,
Outras parece que me simpathiso...
E si o "gajo"  "apertar", faço fiasco
Nesse exame, em que tenho tanto siso...


Si muito não estudei durante o amno,
Si não fui bom discípulo (nem mau...)
Não supporto um castigo deshumano,


Nem, por isso, acho que mereça "pau":
A culpa é só de quem me disse - insano! -
Que o exame era "sopa", era "mingau"...


10-28


(17 anos) 


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Por ocasião do amniversário de d. Nenê, diretora do Grupo Escolar João dos Santos


Hoje, dia de vosso natalício,
Dia de jubilo e felicidade,
O Grupo todo agita-se em bulicio
Num preito carinhoso de amizade.


Tanto os alumnos quanto as professoras
Do vosso aniversario na passagem,
Em manifestações commovedoras,
Vos rendem, com efusão sua homenagem.


Vós que sois de virtudes um modelo,
Que nos tratae com maternal amor,
Que possuis um espírito tão bello,
Sempre afável e sempre encantador;


Que viveis espalhando beneficios,
Continuamente pela vida em fóra,
Para tal não poupando sacrifícios,
Ouvi as nossas saudações de agora.


As felicitações de nós, creanças,
Que ainda temos o espirito illibado,
São tão suaves como as brisas mansas,
Tão puras como o lyrio immaculado...


Os votos tão sinceros, tão ardentes,
Como os formulam almas perfumadas
Pela candura, ou almas innocentes,
Ainda no esplendor das alvoradas...


D. Nenê, fixae-os na lembrança:
Nós os fazemos commovidamente,
Elles são impregnados de esperança,
E os ha de ouvir o Deus omnipotente.


São vossos nossos corações... E vão,
Um a um, todos elles se abrigar
No vosso amplo e bondoso coração:
E, certo, elle ha de todos comportar...


17.9.928


(17 anos)


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Quadras feitas por occasião de uma festa em benefício da Caixa Escolar do Grupo João dos Santos e insertas em cartõezinhos para a venda de chá


Ó vós almas tão piedosas,
Vós que viveis na fartura,
Abri as mãos, cariodosas,
Socorei a desventura
_______


Quem dá aos pobres empresta a Deus
Diz o rifão:
Com juros paga Elle a quem dá
De coração.
________


Todos, mães, filhos, esposos,
Ajudaes os pobrezinhos,
Os que vivem andrajosos,
Sem pão, sem lar, sem carinhos...
_______


Vós, corações generosos,
Vós que viveis sem cuidados,
Olhai os que estão sequiosos,
Famintos, esfarrapados...
_______


Sede bons e sede nobres,
Praticae a caridade,
Deixae correr vossos cobres,
Pois a socorrer os pobres
Tereis a felicidade...
_______


Auxiliae as obras pias:
Vossas esmolas serão
Mudadas em alegrias,
Enchendo o vosso coração.
_______


Seccae o pranto dorido,
Fartae o pobre faminto,
Dae brilho ao olhar extincto:
Dae a esta supplica ouvido...
_______


Facilitae a instrucção,
Sede invictos patriotas,
Abri, liberaes, a mão,
Deixando "correr" as "notas"...
_______


Implora a Caixa Escolar,
Cheia de fé e de ardor,
Para ninguém lhe negar:
Dê, seja lá quanto for...
_______


Enfim, que custa uma esmola?
Não custa nada e, no entanto,
Muito allivia e consola,
Seca a muita gente o pranto...


28-7-928


(17 anos)


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O Paulo teimava em recusar o convite para o cargo de Secretario do Centro Academico Candido de Oliveira, tendo, afinal, obtido que o seu nome fosse retirado, evitando, assim, a fatal eleição, Dahi este soneto:


Querem que o Paulo seja secretario    (NC)
Exercer venha, lépido, o mandato:
Acham-no reflectido, bom, cordato,
Tendo um talento produtivo e vario

Mas o Paulo vê nisso o seu calvário,
A agitação do seu viver pacato:
E triste, afflicto, pede a Deus que ampare-o
E não permitta consumar-se o acto...

No entanto à noite, em memorável pleito,
Será, por certo, o meu amigo eleito,
Por mais que a todos a renuncia brade.

E penso, enquanto dor extrema afflige-o
Eleito - exemplo raro de prestígio -
Sem cabala ou pressão, contra a vontade!...


1928
 
N.C. Por esse e tantos outros poemas, depreende-se que Belisário não acalentava grandes veleidades literárias: escrevia por diletantismo, como um meio de reter um momento significativo. Ainda assim, mesmo sem se esforçar, era um virtuose. Nesse poema jocoso, despretensioso, saltam aos olhos dois momentos de rima brilhantes. As rimas clássicas, pelo critério que alguns denominam "VALORES", classificam-se em pobres, ricas, raras e preciosas. Preciosas são aquela de dificílima concepção, que envolvem quase sempre a fusão de duas palavras para rimar com apenas uma. Notem-se, aqui, "calvário" com "ampare-o"  e "afflige-o" com "prestigio", dois exemplares magníficos da rima preciosa. 
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SYNCHRONISMO


Lá fora ulula a tempestade com fragor,
Ameaçando a eversão da terra devastada,
E zune o vendaval, horrendo, assolador,
Deixando uma floresta inteira estorcegada!...


Rasgam relampagos as trevas com tremor,
E ribombam trovões de quebrada em quebrada,
E as aguas a roncar de um modo assustador
Se arrojam por grotões, em trágica arrancada!...


Lá fora a lucta colossal dos elementos,
Choque das forças naturaes desembridadas,
A terra a contorcer-se em espasmos violentos!...


Cá dentro um coração que acelera as pancadas,
A angustia, a dor, a lucta, enfim, dos sentimentos
- Todas as forças d'alma em tropel, desenfreadas!...


janeiro de 1929

(17 anos)
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(Sem título)

Minh'alma é como um árido deserto,
Num mar immenso de esbraseada areia,
Onde já nada medrará por certo,
Sob um sol que chammeja, que incendeia...


Minha vista cançada em vão se alteia,
Investigando no horizonte aberto,
Um ponto, mesmo enganador e incerto...
Tudo debalde: sempre céo e areia...


Nem ao menos uma árvore onde cante
Um ninho e que dê sombra senão fructo,
Nem um filete dagua murmurante...


Erma de affectos, erma de illusões,
Minha pobre alma envolve-a eterno luto
E fustiga-a o simum das afflções!...


Janeiro de 1929

(17 anos)
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ETERNO DUALISMO

Uma, morena, de um moreno fino,
Avelludado, os olhos e a cabeça
Tão negros como a noite mais espessa,
É de belleza e graça esplendido himno...


A outra é loura... Tem algo de divino...
Creio até que eu talvez não a mereça...
Em seu rosto, em seus modos vejo impressa
Uma graça lyrial, que não defino...


Não sei qual escolher. Tremo, vacillo...
Se uma espelha no meigo olhar tranquilo
A belleza sem máculla do céo,


No da outra arde sinistro fogaréo,
Seu brilho extranho me fascina e aterra:
Crepitam nelle as seduções da terra!...


Janeiro de 1929

(17 anos)

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ALEGRIA

Cantae, montes, planicies, rios, prados,
Aves e flores, todos de alegria,
Soprae ó zephyros embalsamados,
Celebrando comigo o grande dia!


Suas palavras sofrego bebia,
Quando ouvi dos seus labios nacarados
- Não fui victima de uma phantasia! -
Ser eu o objecto dos seus bons cuidados!...


Meu coração badala como um sino,
Em dias santos, convocando os fieis,
E o seu cantico é suave e crystallino...


Creio se divinizam as creaturas,
Mesmo as mais pecadoras e crueis,
Quando as abrasa o amor, que as torna puras!...


Janeiro de 1929

(17 anos)

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LAMENTAÇÕES

Se tu soubesses a cruciante dor
Que têm teus olhos limpidos causado,
Se tu soubesses do meu triste amor,
Que me tem a existencia amargurado...


Se tu soubesses como eu tenho andado
À tua espera ancioso, soffredor,
Sentindo na minh'alma o vacuo, o horror,
A agonica afflição de um condemnado...


Se tu soubesses... Ah! bondosa e pura,
Haverias então de, commovida,
Ter para mim um pouco de ternura...


Vês? É, em summa, o amor bem singular.
Sinta embora a sangrar a cruel ferida,
Só te sei bendizer, perdoar... amar...


Fevereiro de 1929

(17 anos)

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EXCLAMAÇÃO

Ah! Ter a paz de espírito dos crentes,
A fé ingenua dos illuminados,
Dos que vivem como anjos innocentes
E morrem como justos bem amados;


Desses velhinhos d'olhos ennevoados,
Cabeças como a neve, mãos trementes,
Ou desses monges rotos, macerados,
Que peregrinam como penitentes;


Das creanças candidas immaculadas,
Daquellas creanças por Jesus amadas,
Enfim, das almas simples e piedosas:


É revesti-la de macias rosas,
É envolvê-la toda de doçura,
A estrada que vai dar à sepultura...


Fevereiro de 1929

(17 anos)

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PROFISSÃO DE FÉ

Tenho uma fé inabalável no trabalho
Uma confiança inquebrantável no futuro.
Só da perseverança e bondade me valho
Nesse meu caminhar penoso, mas seguro.

E nas preocupações todas em que me esgalho,
Conservo o coração immaculado e puro:
Sem jamais me afastar para qualquer atalho,
Hei de attingir a perfeição a que me apuro.

E, quando o meu labor desabrochar em flores,
Ou em frutos se abrir, frutos compensadores,
É que uma seiva forte o alimenta por certo:

É que eu em holocausto ao ideal o offerto,
É que a dor, a fatal realidade, o perfilha,
É que o inspira o amor da pátria, da família!...

março de 1929

(17 anos)


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AINDA A POESIA





PARIDADE SINISTRA

Minh'alma é como um lobo esfaimado, feroz,
Que a floresta percorre à cata de uma presa.
Cego na própria força, a galopar veloz,
Crê que a vae encontrar descuidada, indefesa.

Mas, após uma busca infructifera, a sós,
Olha com ar de desafio a natureza...
E em sentindo aumentar-lhe a fome horrenda, atroz,
Uiva numa explosão de colera represa!

Turvada, envenenada a corrente da vida
Pela verdade fugitiva, persegui-a
Louco, atravez do estudo, essa selva sombria.

Mas nem mesmo lhe vi a sombra fementida...
E angustiado de dor, blasphemo em altos brados
E escuto em meu clamor a ancia dos condemnados!

Março de 1929

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POR OCCASIÃO DA CHEGADA DE MISS MINAS

Tu, meu torrão natal, terra de Tiradentes,
Sobre quem eu quisera ir desfolhando rosas,
Dos teus filhos não vês os corações frementes,
A alegria que espouca em ovações ruidosas?

Si tens pontes de pedra e templos imponentes,
Passado imorredoiro e tradições gloriosas,
A que, por certo, em tempo algum, jamais desmentes,
Também abrigas a formosa entre as formosas.

Salve, São João Del Rey! Agora estas montanhas,
Desse teu sol radioso a luz em que te banhas,
O Corrego Lenheiro em doce marulhar,

Tudo a rir e a cantar, em festa a natureza,
Parece, num clamor uníssono, bradar:
Terra de tradições e de belleza!...

5 de abril de 1929

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É TARDE...

Por que parti precipitadamente,
Sem os rogos ouvir da que ficava,
Da que, pedindo encarecidamente
Que eu não fosse, ao me ver partir chorava?


Foi loucura: bem que ella o adivinhava...
Ah! por que desprezei-lhe a voz consciente,
A esclarecida voz da que luctava
Por desviar-me do que eu tinha em mente?

Por que não lhe escutei a admoestação?
Melhor, por certo, ter ficado,
Como, aliás, me pedia o coração...

Hoje quero voltar ao que era outrora,
Porem, estou eu mesmo tão mudado
Que é impossível retrocesso, agora...  

abril de 1930


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INTROVERSÃO


Às vezes penso descobrir em mim
Certa tendencia para o mysticismo...
E cheio de terror, vejo-me affim
Dos dominados pelo fanatismo...


E chego a acreditar que ao mundo vim,
Nas allucinações em que me abysmo,
Para exemplo do máo e do ruim,
Para uma empresa de espiritualismo...


Sou um remanescente, um "revenant"
Do delírio da antiga fé christã,

Um exaltado, um mystico fremente,


Que, sentindo a influência do ambiente,
Essa reacção fatal de um meio adverso,
Procura respiráculo no verso?

Abril de 1930


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Rio, 3 de julho de 1930

O meu amigo Roosevelt Andrade apaixonou-se - apaixonou-se, sim, é este o termo, pois a sua conduta é de um apaixonado - por uma donzella cujo nome é inútil mencionar, noiva de outrem há uma dúzia de annos. E, com escandalo do pacato povo de São João, os dois, dizendo-se simplesmente amiguinhos (explicação inviável) não se separavam...

Tornando-nos, eu e elle, ao Rio, onde, aliás, reside o noivo, para prosseguirmos nos nossos estudos, viemos a morar juntos. Percebi, desde logo, que o meu companheiro, com singular frequencia, recebia cartas expressas, as quais cercava de infinitas precauções, temeroso de que alguem as lesse, mudando-as sempre, cuidadosamente, para um dos bolsos interiores do casaco que vestia. Appellidamo-lo, então (esqueci de dclarar que eramos tres, pois não nomeei o outro occupante do mesmo quarto, o Pedro do Nascimento Teixeira) o "carta expressa". Viviamos a importuna-lo com essa brincadeira, com a qual, a principio, se agastou, não tardando, entretanto, em tornar-se às boas. No fim de certo tempo, as nossas allusões já o divertiam e até, quando aquella que o magnetizou e que é professora em um grupo escolar de São João veiu ao Rio, por occasião das férias (de 15 a 30 de junho), levou-lhe o soneto abaixo, por mim escripto, num dos ultimos dias do mez de maio.

E exaro aqui o soneto que se segue, tão somente pelo merito que ele terá, mais tarde, de evocar uma reminiscencia.

Coitado! Vive ansioso, descontente,
O nosso amigo, Vevetinho Andrade:
Por mais que tudo elle  occultar-nos tente,
Percebemos que dor extrema o invade.

É amor o que o põe assim doente,
Pois elle está doente de verdade:
Seu aspecto exterior nos mente,
Dilacera-o, lá no íntimo, a saudade...

Seu pensamento vôa para alem,
Para onde mora o seu supremo bem,
Para nossa longinqua São João...

Consola-o apenas - pouca alegria essa! -
De quando em quando uma cartinha expressa
Que elle coloca sobre o coração...

Maio de 1930

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Fim de Combate         (NC)

E cahirei vencido...
Pouco importa: é mais bello e mais nobre
Luctar sem a esperança da victoria.
Luctar por luctar.
Luctar pelo prazer de luctar,
Pelo destino de luctar,
Pela fatalidade de luctar.
E, por fim, cahir sem um gemido ou uma maldição.
Cahir com serena compostura.
Bravamente.
Estoicamente.
Ainda uma vez affrontando,
Com superior indulgencia,
Com tranquilla indifferença,
A turba ignara e hostil.

Outubro de 1930

N.C. Primeiro poema em que são deixadas de lado as rígidas regras da versificação clássica. Um estranho solitário, encravado no ninho de poemas juvenis do autor. Talvez aqui já houvesse a influência de Drummond e outros. Em 1927, Drummond já havia publicado o polêmico "No Meio do Caminho", em versos brancos, com métrica livre e ausência de rimas.

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CANTICO                   (NC)

Jamais encontrarás quem te ame tanto,
Como eu te amo, com tanta exaltação!
Não houve amor igual ao meu, porquanto
Nem sei bem se é amor, se adoração...

E se outros porventura te amarão,
Ah! Nenhum cantará tal qual eu canto,
Assim transfigurado de emoção,
O divino esplendor do teu encanto...

Amo-te tanto, ó languida creatura,
De extranho mystico palor na face,
Que por esta affeição suave e pura

Nem mesmo fugiria ao mal e ao crime,
Se ella, ao contrario, ao bem não me arrastasse,
Se ella um amor não fosse que redime... 


3-2-1931

N.C.  O poema  é um soneto  - forma onipresente na obra poetica do autor -  que se divide em quatro estrofes, sendo duas de quatro versos (quartetos) e duas de três versos (tercetos).  Quanto à métrica, trata-se de um decassilabo heróico, porque todos os seus versos apresentam dez sílabas com pausa na sexta sílaba. Este poema de Belisário é extremamente melódico e nota-se que cada verso desliza com muita suavidade, detendo-se ligeiramente na sexta sílaba, até consumar-se na décima e última sílaba. Não se deve confundir sílabas poéticas -  eminentemente ligadas à sonoridade - com sílabas gramaticais.


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(Sem título)              (NC)

Súbito, tudo se tornou cambiante,
Com nevoentos contornos proteiformes.
Mas arrancou-me ao somno repousante,
Mas despertou-me torva, repugnante
Torva velha rugindo: "por que dormes?..."
Uma velha rugindo: por que dormes?..."

Neste instante interpoz-se, linda e suave,
Como o retorno da ilusão perdida,
Uma princeza de divino porte.

Fez-se a face das cousas fria e grave...
E a megera ameaçou-me: "Eu sou a vida..."
E a jovem me sorriu: "Eu sou a morte..."

N.C. Esse poema rascunhado e manuscrito parecia tomar a forma de um soneto, mas faltou-lhe um dos quartetos.

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(Sem título)

Que me importam a mim outras mulheres?
Só tu existes para mim no mundo.
E é porque não declaras se me queres
Que algumas vezes de affição me innundo...

Deixa-me ao menos deste amor profundo,
Se por acaso amar-me não puderes,
O engano adorável em que fundo
Minha ventura: não me desesperes...

É a esperança a luz que me allumia:
Não deixes que me envolva densa treva,
Não me retires a minha alegria...

Na terra nada mais me prende e enleva.
Se não me podes dar o amor, querida,
Dá-me a illusão: ella me basta à vida...

14-3-931
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(Sem título)

Tu que assemelhas uma monja antiga,
Pallida como um cirio macerado,
Não faças como as outras, minha amiga,
Não fujas a este mundo de pecado.

Mas que será que assim te attrae e obriga?
Tens pelo medo o espirito abafado?
Não penses na Terrível Inimiga,
Não te occupes da Morte... A vida é um prado.

Não vás para a floresta erma e sombria,
Onde não mora o amor nem a alegria:
Fica ao sol, entre aromas e entre flores...

Repelle esses teus mysticos pendores:
Não sejas uma rosa das fanadas,
Queira ser das que foram bem amadas...

8-3-931
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MALDITA SEJAS!

Maldita sejas, pérfida creatura!...
Tua belleza é tragica e assassina...
O amor que me inspiraste e me tortura
Não é o doce affecto que illumina.

É a paixão que desespera e mina,
À alma trazendo morte prematura,
Ó mulher demoníaca e divina,
Que me innundaste a vida de amargura.

O odio ao que vive, a colera, a maldade,
A incoercivel demencia que me invade,
As subitas tendencias malfazejas,

O abjecto ser que doravante eu for,
Tudo provem de tão funesto amor,
Tudo emana de ti... Maldita sejas!...

Março de 1931

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TRISTEZA                          (NC)

Innefavel, fluidica tristeza,
Que hás sido a companheira dos meus dias,
Irmã gemea da graça e da pureza,
Que me acalentas e me acaricias...

Essencia esparsa pela natureza,
Alma dos astros e das penedias,
Que me espiritualizas a incerteza
Das minhas horas ermas, fugidias...

Nostalgia invencível do infinito,
Saudade de uma perfeição perdida,
Doce resignação de um ser afficto...

Tu que ergues a creatura decahida,
Mudando em prece o seu blasphemo grito,
Embalsama-me sempre e sempre a vida...

1929

N.C. Este soneto era o poema favorito do autor. Nas raríssimas vezes em que aceitava, meio contrariado, falar sobre o que escrevera, costumava dizer: "se de tudo que eu escrevi, por mera recreação, algo tiver valor, será unicamente "Tristeza". De fato, a par da melodia bilaquianamente fluida do soneto, as metáforas que definem a tristeza como estado d'alma são tantas e de uma densidade filosófico-poética tal que o autor se aproximou, sem dúvida, do virtuosismo dos poetas consagrados. Em forma e conteúdo.

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NUM ALBUNZINHO DE UMA CARIOCA
NO PEQUENINO ALBUM DE UMA CARIOCA

P'r'o teu album pequeno
Como o teu rostozinho (de um moreno
Que é feito de luz),
Eu quizera compor depor
Versos suaves, quasi com o dulçor
Infinito dos olhos de Jesus.

Versos em que estivesse este meu culto
E estivesse o teu vulto,
Que me foi invadindo lento e lento...
Versos em que fulgisse a tua graça
Languida, "exquise", lassa
E o meu encantamento...

Aspiração bem louca...
Seria toda sutileza pouca...
Pode o poeta o universo
Abarcar num momento;
Mas teu fascínio, o meu deslumbramento
É que não caberão jamais num verso...

Novembro de 1931

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HIMNO AO GRUPO AURELIANO PIMENTEL

Nosso Grupo propugna com denodo,
Cheio de enthusiasmo varonil,
Para que a Pátria seja um forte todo,
Para o engrandecimento do Brasil.

Brademos, pois, com o máximo rigor,
Num tom vibrante, forte, altivo, ufano
Qual dos clarins o bellico clangor:
Hurrah! Hurrah! Ao Grupo Aureliano!

Aqui se lucta pela liberdade,
Pois que todo o labor pela instrucção,
Fórma nobre e vivaz de actividade,
É uma obra eficaz de redempção.

Brademos, pois, com o máximo rigor etc.

Insuflando almas sãs em corpos sãos,
O nosso Grupo erige-se em factor
De bravos, generosos cidadãos,
Que da grandeza pátria são o penhor.

Brademos, pois,  com o máximo rigor etc.

Aqui se exerce fúlgida missão,
Sobredoirada de sublimidade:
Moldam-se os que amanhã combaterão
Em prol da Pátria, em prol da Humanidade

Brademos, pois,  com o máximo rigor etc.

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O POEMA IMPOSSÍVEL

Nesta pagina azul
Quero deixar um poema tenue e lindo,
Translúcido e taful
Em que eu vá a minha alma diluindo...

Poema que tenha da belleza o cunho,
Reflicta o sentimento
E fique como o magno testemunho
Do meu deslumbramento...

Poema em que suggira e em que esvoace
O teu meigo perfil
E esse airoso frescor da tua face
De creança gentil...

E que diga do encanto que despertas
E a que extranhas não são
Mesmo almas calcinadas e desertas,
Mortas para a emoção.

Poema que não componho...
Nada disso se exprime ou se traduz:
Não se retrata o sonho,
Nem se consegue aprisionar a luz...

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(Sem titulo)

Solenne, impertigada, austera e fria,
Passa por entre a turba reverente
Com um ar de princeza displicente,
A quem a vassalagem entedia...

Incensada a toda hora, noite e dia,
Olha os pobres mortaes superiormente.
Fala-se que deixou prudentemente
A Associação das Filhas de Maria...

Cançada do seu sceptro de princeza,
E da inconteste e fúlgura realeza,
Bem como do cognome de "a mais bella",

A grande seductora - mas que asnice! -
Seduz-se e vence pela rabulice:
Pretende ser agora bacharela!?...


Presente de Natal



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"Todo o mundo sente que a poesia tem de transfigurar-se a fim de vencer o desprestígio a que a votou um processo annachronico. Eu não sei qual será a forma nova. No momento ninguem sabe. É preciso que alguns caminhem na noite para que outros mais ditosos e predestinados caminhem na luz. O trabalho dos primeiros será obscuro? Só a obra dos segundos será radiosa? Pouco importa".


"Não tenho ogeriza aos versos metrificados e rimados, ogeriza em que se obstina a maioria dos plumitivos. Julgo apenas que o seu tempo é completo. Não sou pelo rompimento com o que nos antecedeu. Também eu poetei, outrora, à antiga. Perpetrei sonetos".

Belisário Leite de Andrade Neto NC


NC - A partir dos poemas que se seguem, Belisário abandona os versos acadêmicos, metrificados e rimados, e parte para os versos brancos e soltos, influenciando-se, finalmente, pela Semana de Arte Moderna e todo um movimento mundial de poesia. Mas Belisário, ao aderir às novas formas poéticas, em momento algum adere aos que querem insanamente sepultar o legado inestimável das escolas clássicas. E produz esse sensível pequeno texto, em defesa dos poetas antigos, antecipando-se à futura autocrítica dos modernistas, à reconciliação que viria entre acadêmicos e modernos e, portanto, à vitória final do bom senso. 
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DIES IRAE

Ainda has de ser minha, mas então será tarde,
Pois o infortunio e o egoismo ter-me-ão transformado,
O vendaval que desencadeaste ter-me-á fustigado e empedernido.

Hei de ver-te ante mim, prosternada e humilhada,
Mordendo, desprezível e abjeta, o pó que os meus pés calcam.
Hei de possuir-te, para teu horror e minha alegria,
Alegria bárbara, furiosa e sanguinária,
Alegria de fera a estraçoar a victima inerme.

Se supplicares, ferir-te-ei, atormentar-te-ei
Com furia redobrada e sadica.
Se te mostrares forte, hei de te abater
Até arrancar-te a humilhação das lágrimas.

De qualquer forma, serei brutal, terrivel, implacavel.
Insensivel aos teus estertores,
Surdo aos teus lamentos e uivos,
Hei de despertar-te o remorso que desvaira e mata,
Hei de ascender-te o desespero que devora e aniquila.

Levar-te-ei aos empuxões e arrastões,
Por veredas e brenhas, por escarpas e desfiladeiros,
Numa peregrinação retrospectiva,
Para admirares a tua horrenda obra de devastação e destruição

Ainda has de ser minha, mulher soberba e fatal,
Bella como os imortaes e cruel e imperfeita como os humanos!

Ainda has de ser minha, estatua esplendida,
Modelada por um Deus e animada por um demonio!
Ainda has de ser minha...

15-7-31

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(Sem título)

Minh'alma pervagava, descuidada e feliz,
Atraves um prado vivente e florido...

Mas passaste, Attila macabro,
Encarnação maldita das bestas do appocalypse,
E a vida tornou-se-me uma paragem erma, desolada, frigida,
Onde erra um espectro esqualido - minh'alma...

Podias ter sido inspiração e luz, amparo e alento,
E foste a móle de trevas caliginosas, condensadas,
Que se despenhou sobre mim e amortalhou-me na noite das noites.

Com teu orgulho de deusa,
Com tua insensiblidade de animal, de pedra,
Protaste-me, envileceste-me, arruinaste-me.

Mas que? Não exores misericordia, é inutil... Segue-me.
Não a tereis como eu não a tive... Olho por olho, dente por dente.
Debalde pedirás abandonemos a região calcinada e sinistra,
Afastemo-nos do passado e fujamos ao presente... Debalde!

Mesmo porque a região calcinada e sinistra
Se extende para alem, muito alem, pelo futuro afóra...
Della só sahiremos - se sahirmos - pela porta da morte!

Nem eu, se pudesse, te retiraria de entre esses escombros,
Apparentemente hirtos e silentes...
Pois não os estás vendo estorcer e bracejar,
Não os estás ouvindo rugir e imprecar?

Não corras espavorida... Olha que vacillas... Olha que tombas...
Não cerres os teus olhos brilhantes e esgazeados, que as lagrimas não rociam,
Nem comprimas com as tenazes das mãos a tua cabeça gentil,
Que não expungirás das tuas retinas o espectaculo biblico das derrocadas
E não expulsarás dos teus ouvidos os ganidos da maldição!

Arrebatar-te desta gehenna? Não posso nem o faria...
É superior às tuas forças? Sucumbes? Não terás esta fortuna...
Descança... Não sucumbirás como eu não sucumbi.
Tua agonia tem ainda de attingir a vibração infinita dos paroxismos!
Minha vingança tem de completar-se, pois, do contrario, eu estoiro.

Contempla o lugubre effeito da tua segregada e torpe traição.
Não foram somente sonhos, illusões, mocidade, futuro,
Que escortaçaste e esphacelaste.

Foi uma bondade que estagnaste, uma inteligencia que esterelizaste,
Uma vida que malsinaste, uma alma que perdeste!
Uma alma que perdeste! Uma alma que perdeste!...
E uma alma, mulher hedionda sinistra,
Seja a minha, seja a do infimo dos homens, é um infinito...
Tu destruiste, pois, todo um infinito e o teu crime é incommensuravel!

15-7-31

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ELEGIA QUASE FÚNEBRE EM LOUVOR DA VIDA, NÃO DA MORTE (NC)

Ele partiu de repente, sem se despedir,            Foto 10
Como uma visão que se desvanecesse...
Quando o procuramos, ele já não estava;
Quando o chamamos, ele não respondeu.

Vimos então que a nossa solidão
Era cheia de sua presença
E que o nosso silêncio era povoado
Pela música da sua voz, do seu vulto, do seu gesto,
Pois, de súbito, se desnudaram em torno de nós,
Como desencantadas,

As gélidas plagas da nossa solidão e do nosso silêncio,
De uma solidão sem marcos nem fronteiras
E de um silêncio dentro do qual
O próprio pensamento é como um rumor profano.

Ele partiu.
Não porque não nos amasse
Ou não sentisse deixar-nos,
Mas porque não nos pertencia
E aquela era a sua hora de partir,
A hora certa e justa em que devia seguir.

Não choremos por ele, choremos por nós mesmos...

Os amados dos deuses não morrem cedo,
Os amados dos deuses morrem na plenitude.

N.C. Composto quando da morte de seu irmão, José, em 1944, e republicado na primeira página de "O Jornal" e em um folhetinho, quando se completava, em 1978, um ano do falecimento do próprio Belisário. 
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PAVOR

Envolve-me, constringe-me a tétrica quietude das sombras adensadas
Noite compacta, noite de um negror infernal.
No alto: trevas... Embaixo: trevas... Em derredor: trevas...
Devo estar suspenso nas trevas.

Ó Céos! Será que rólo há millenios, será que rolarei eternamente nas trevas?
Esta escuridão, que pesa sobre mim como uma montanha,
Não se adelgaçará jamais?

Não verei nunca as planícies claras, os horizontes sem fim, que refulgem alem?
Pois que alem ha de haver planicies cheias de sol e horizontes resplandecentes!
Pois esta maldita treva não pode ter invadido o infinito
E apagado, uma a uma, as estrellas scintillantes e amoráveis
Como um vento protervo apaga os sirios de um santuario
Enoitecendo-o sacrilegamente!
Mas não extinguindo em mim o vasquejante clarão da esperança...

Sim: enquanto a loucura não me adormecer,
Continuarei esperando e crendo,
Nem sei bem em que, em cousas vagas, em promessas imprecisas,
Mas de qualquer modo esperando e crendo...

O peor é  este silencio que pertranze, gela, ensandece,
Este silencio de eras mortas, eras absurdas,
Anteriores ao Universo, quando tudo inexistia...
Este silencio espectral, coagulado, hispido,
Que faz pensar na consumação dos seculos, no fim das cousas...
Este silencio abstrato, que lembra o nada absoluto,
Como se antes do silencio fora o silencio
E depois do silencio ainda devera ser o silencio...
Os meus gritos espavoridos, lúgubres não ressoam,
Desapparecem sem ruido nas fauces immensas das sombras, esse dragão informe...
E, então, não ouvindo as minhas próprias vociferações, os meus próprios estertores,
Sinto como o meu desamparo é infinito, como o meu desconforto é sem remissão,
Como é tremenda a companhia de pensamentos allucinados e torvos!...

Pois eu estou só, inenarravel, inaturalmente só...
Só com as minhas dúvidas, as minhas ansias e o meu terror.
Perdido, abandonado, desarvorado,
Realidade consciente, realidade unica na morta, calliginosa immensidão.

O Universo desappareceu: restamos eu e a treva.

A treva... Eu... Nada mais... Que é do resto?
Que é dos outro homens? Que é da luz?

Ó Céus, que vos abscondestes ou que fostes abscondidos!
Esta lobrega soledade, que é a mais terrível da condemnações, não terá fim?
Já agora serei sempre só, arrepeladamente só, desvairadamente só?
Só como o Christo no Gethsemani!
Só, nas entranhas deste negrume,
Como o Christo sangrento no alto da Cruz, naquele instante que espanta os séculos!
E não participo daquela resignada mansuetude,
E não me assiste a proteção do Pae,
E não tenho a certeza de uma alta, superior destinação,
E não aguardo a libertação proxima, a ressurreição gloriosa,
Mas também lanço aterradamente - e iterativamente -
Na treva muda, feroz, insaciável das minhas angustias,
Esta apostrophe sem resposta, esse clamor sem repercussão:

"Eli! Eli! Lamma Sabactani"?      NC

193?

N.C. Significaria "Deus! Meu Deus!" Por que me abandonastes?" Entre os estudiosos, é muito controvertida a tradução da frase, proveniente do grego. 
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INVOCAÇÃO AO VERBO

Por que não vindes, palavras, simples, claras e harmoniosas?
Palavras aladas, poderosas e mágicas?
Há milênios estou à vossa espera e à vossa procura.
Ah! Se viésseis, os abismos até aqui absconsos ficariam iluminados,
As minhas dúvidas, até aqui inuteis, seriam fecundas,
As minhas ânsias, até aqui desesperadas e sem rumo, se precipitariam,
Se precipitariam graves e ligeiras e iriam perder-se e repousar no seio do infinito...

As minhas interrogações, até aqui mudas e impotentes, rasgariam novos horizontes
E as minhas audácias, até aqui sufocadas e perdidas, desvendariam mundos ignotos...

Ah! Se viésseis, palavras, simples, claras e harmoniosas,
Que atravessais os corpos opacos
E avançais muito além das frias e falsas aparências,
Que penetrais no mistério
E desceis até a origem das idades...

Por que não vindes? Se viésseis,
Eu seria como o monarca de um reino sem fronteiras,
Um monarca livre, sem ministros a tolhê-lo ou vassalos a importuna-lo,
Vestido com um manto rubro e incorruptível, púrpura imperial
Tingida com o resplandecente vermelho da perpétua manhã dos seus domínios,
E trazendo na cabeça um diadema de estrelas
Cuja luz não cega, cuja irradiação não queima e cujo brilho não empalidece.

Por que não vindes? Se viésseis,
Eu seria como o alquimista que houvesse encontrado a pedra filosofal,
Como o cruzado que hovesse libertado o santo sepulcro...

Por que não vindes? Se viésseis,
Eu me sentiria, de repente,
Sábio como Salomão,
Rico como Creso
Poderoso como Cesar!
Por que não vindes, palavras simples, claras e harmoniosas,
Que podeis aprisionar a substância do silêncio
E a magia da noite e o trêmulo e indeciso sopro do além?...

Porque não vindes, palavras simples, claras e harmoniosas,
Que anulais o espaço e dissolveis o tempo,
Fazendo-nos contemporâneos do gênesis ou da consumação,
Pois nos podeis mostrar ou o Espírito de Deus sendo levado sobre as águas
Ou o Filho do Homem descendo sobre as nuvens?

Se viésseis, eu conheceria todas as cousas amáveis e belas até aqui ocultas para mim.

E descobriria a luz de que se doura o sofrimento,
Que é onde se esconde a grandeza e a glória,
O sofrimento, que é um sinal de predestinação
E um dom do amor e da misericórdia de Deus.

Se viésseis, eu seria conduzido até as raízes dos pensamentos e até as fontes das emoções
E de lá regressaria possuído do assombro e da vertigem
De quem tivesse andado a espiar para além dos mundos,
A imóvel eternidade, sem dimensões nem perspectivas.

Se viésseis, eu poderia fazer voltar os que partiram para nunca mais
E me faríeis compreender a sua mensagem e recolher as suas confidências e revelações,
Pois que a morte nos dá a verdadeira fisionomia e acalma o sentido da nossa trajetória
(Quanto gesto, quanta veleidade, quanta atitude só se tornam nítidos e fúlgidos
Depois que as grandes e temerosas sombras se abateram sobre a pobre, incomunicável criatura!)
E, embora isso nem sequer anunciasse o conhecimento e a glória da ressurreição,
Os mortos, meus mortos queridos estariam então redivivos.

Se viésseis, eu poderia ouvir desde agora os que ainda nem sequer gerados foram
E, no entanto, embora com os passos impalpáveis, fora do tempo,
Já estão caminhando para vida autônoma e consciente
Através dos indevassáveis movimentos da vontade divina
Na sua distante e calma ordenação dos fenômenos e dos destinos.
E esses meus diálogos com o futuro
Teriam a força, o fragor, o clarão, a majestade das profecias.

Se viésseis, convosco tornaria a pureza, a inocência e o ideal,
Tornaria convosco o sonho, a ilusão e a esperança
E eu teria a vara encantada, a cujo toque tudo se anima e transfigura...

Por que não vindes, palavras simples, claras e harmoniosas,
Núncias e mensageiras da Inefável Presença
Que um dia me libertará da solitude e da orfandade?...

Se viésseis, eu teria a expressão para o amor, que move o sol e as outras estrelas,
A forma para a incessante revelação do inesperado
E o instrumento para a aventura sem poiso nem termo.

Se viésseis, tudo mais me seria dado por acréscimo, como se lê no Evangelho.
Mas não vindes agora nem vireis jamais
E eu continuarei miserável e vazio
E eu morrerei esquecido e abandonado.

Também, se viésseis, de que valeria?
Todos estão surdos, têm pressa,
Ó palavras, simples, claras e harmoniosas!...

Não haveria ninguém a quem vos confiasse
Nem corações que vos recolhessem e guardassem...
Só me restaria espalhar-vos ao vento e talvez, então, por um instante apenas,
Mas que lhes ficaria inolvidável e os deixaria infinitamente perturbados e mortalmente saudosos,
Os homens percebessem, de súbito, mais que pelo corpo, pela alma,
A passagem de um ar fino, caricioso, embalsamado e leve
Como desde a primeira manhã do Paraíso outro jamais soprara sobre a Terra...

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CÂNTICO À MULHER PERFEITA

Jamais te encontrarei, mulher ideal,
Resumo da natureza,
Manifestação tangivel da divindade...
A ti que serias o meu alter-ego,
O que me falta, o que me completaria,
O que eu necessitaria para que a paz fosse commigo,
Pois tu me desvendarias todos os mysterios
E me acalmarias todas as inquietudes...

No entanto, summula de perfeições, feixe de luz,
Aspiração incessante,
Que me exalças e me consomes,
Jamais te encontrarei...
Talvez porque te não mereça...

Talvez hajas passado bem perto e eu não te reconheci,
Porque os meus sentidos são broncos,
Porque as minhas faculdades são grosseiras,
E apezar da pureza e virgindade do meu coração,
Que mulher alguma possuiu nem possuirá jamais
E que guardarei impolluido, intocado,
Para a divina amante que és tu,

Tu que tardas e tardarás: não virás nunca, bem o sei,
Mas hei de ser-te cada vez mais fiel,
Se é que a minha fidelidade pode acendrar-se.
És o meu grande, verdadeiro, unico e eterno amor:
Até o último alento hei de conservar bem viva esta chamma purificadora.

Bem sei, no entanto, que não te encontrarei...
Não porque sejas uma abstração:
Embora tenhas o encanto e a seducção das puras idealidades,
Não tens uma existência apenas subjectiva.
Existes realmente, objectivamente.
Eu é que não sei buscar-te nem descobrir-te.
Sei apenas desejar-te.

Mas existes: envolve-me a tua emanação esparsa no universo.
Eu te sinto no ar e na água, na terra e no céo, nas flores e na luz.
Não sei de que nação és nem onde estás, e embora te desconheça e me desconheças,
Sinto o teu influxo, a tua presença neste mundo.

Tu existes...
Eu te vejo em tudo o que me commove e me encanta,
No sorriso e na lagrima, no perfume e na musica...
E fico a pensar
Que o teu sorriso deve ter a espiritualidade das promessas longinquas, innefaveis;
Que as tuas lagrimas hão de refulgir mais que os diamantes e as estrellas,
Pois sao distillações do teu espírito, essencia pura;
Que ha de te circundar um perfume feito da suavidade de todos os perfumes;
Que na musica da tua voz modulam todas as ternuras...

Tu existes, tu deves existir,
Porquanto, não raro, eu me enterneço, eu me enlevo,
E só me pode enternecer, e só me pode enlevar,
O que de algum modo me evoque
Os teus aspectos excelsos, as tuas apparencias perfeitas.

Tu existes... Tu existes...
Foste tu que me transfundiste
A parcella de bondade que me enaltece,
A parcella de belleza que me transfigura.
De ti me vem tudo o que me dignifica, tudo de que me orgulho.
Tua irradiação me aquece e vivifica.
Foste tu que me verteste n'alma
Essa insatisfação crescente e perenne,
Essa não conformação com as realidades que nos aviltam
E as fatalidades que nos esmagam.
E se me sacode e devasta a rebellião e o desespero,
Se rilho os dentes na impotência de vergar, torcer, vencer
A força inexoravel e nefanda que solda os pés à terra,
E porque ella, seu te alcançasse um dia,
- E sem ti não quereria nem poderia vencê-la -
Haveria de combater a minha felicidade,
Perturbar o meu encantamento,
Rmper o meu extase,
E me impediria de subir contigo por aquele raio de luz
Que me extende, há muito, uma estrella grande, refulgente,
Instando-me docemente a a ascender para longe, muito longe...

Mas, talvez, que não impedisse...
Talvez que, levado pela tua mão, eu pudesse delizar pelo fio luminoso...
E eu quizera tanto ir para outra parte,
Deslocar-me no tempo - para outras eras,
Deslocar-me no espaço - para outros mundos...
Porem tu, que não appareceste ainda e não apparecerás nunca,
Tu, somente, tu, divina fugitiva, transportar-me-ias,
Pois és leve e me communicarias a tua leveza,
Tens azas como os anjos, as azas diaphanas da gaça e da espiritualidade,
As que sustentam os altos os altos, interminos remigios.

Mas, se não me surges não é mesmo como se não existisses?
Ah! maldita reflexão, princípio da duvida maligna  e mortal...
Não! É infinitamente diverso! É infinitamente diverso!
Não, não é a mesma cousa... Não pode ser... Como sou insensato!
Entretanto, por que é que te não vejo face a face? Por quê?
É horrível uma tal suspeita!
E parece que ella agora voltará sempre...
Escuta - mas escutarás acaso, não estarei falando ao ermo? -
Escuta: e se não existisses mesmo?...
Hei de detergir esta ignea interogação,
Que me levará à fallencia e à perdição,
Esta desconfiança intermittente, que é nuncia da espantosa tristeza que me prostará,
Como são as "chammas sulfurosas, nuncias dos raios que abatem os carvalhos!"

Tu existes! Tu existes! Tu existes!
O teu effluvio, como uma atmosphera vital, me circunda;
Tenho a sensação da tua immanencia na terra.
Não te posso negar, ninguem te pode negar.
A tua negação é a minha destruição.
Preciso crer na tua existência,
Pois, do contrário, perdida a fé em ti, que me continhas e me guiavas,
Eu me desmandaria e me tresmalharia.
Minha alma seria arida como uma gandara e triste como uma agonia.
Rompidos todos os elos, eu resvalaria na descida sem paradeiro,
Trambolharia no abysmo sem fundo,
Desgarraria da orbita natural,
Onde se inserem as lógicas directrizes dos espíritos equilibrados,
Tombaria na vertigem das forças primitivas, cegas e estereis,
Remoinharia no barathro das energias confusas, tumultuarias e negativistas.
E, então, presa irresgatavel do mal, dementado e blasphemo,
Contestaria tudo e me contestaria!...
Desconheceria tudo e me desconheceria!...
Morreria da pior das mortes: a morte do espírito...
Assistiria ao meu aniquilamento...

Sim: tu existes...
Tu deves existir...
Preciso crer na tua existencia...

193?

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TEMPESTADE                                         (NC)

Lá vem ella montada no dorso do vento,
Que executa um música barbara e angustiada,
Como se cem toiros feridos mugissem ao mesmo tempo!
Lá vem ella envolta na immensa capa dos bulcões mais negros que a treva,
Como baforadas de pez das desmesuradas caldeiras infernaes,
E que avançam como massa informes de horridos guerreiros
À conquista do infinito!
Lá vem ella fazendo estalar o azorrague de fogo das faixas
E gargalhando cavamente no ribombo dos trovões reboantes!
Lá vem ella galopando pelos espaços, escurecendo a paisagem!
A terra, pavida, encolhe-se, aconchega-se, quer fugir
E fica estatelada numa angustia enorme.
A passarada vôa inquieta, procurando abrigo.

A face das cousas percorre um subito arrepio.
Folhas perdidas saracoteiam no ar.
É ella que chega, a tempestadade! E chega com estrepito!
Um chuveiro copioso agreste, fustigante, precipita-se,
Corre em disparada, transpõe o horizonte...
É uma torrente, é um mar suspenso na atmosphera, que se abate!

O anoitecer apressa-se, a escuridão reponta de todos os lados,
Baixa do céo e sobre a terra, funde-se.
Cresce o macabro da tormenta.
Para logo, por toda a parte, regougam as enxurradas,
Saltam em desfilada buscando os grotões,
Que rugem como monstros fabulosos.
Os filetes dagua engrossam em ribeirões,
Os ribeirões inflam em caudaes
As caudaes tornam-se oceanicas...
Massas líquidas, altas como cordilheiras,
Inconteniveis, indomitas, apocalypticas,
Arremettem, vociferando halalis exterminatórios,
Tangidas, açoitadas, insufladas por aquellas forças diabolicas
Que parecem conspirar contra a estabilidade do universo
E desbaratam, num minuto, o esforço secular do homem.
Os uivos das alimarias arrebatadas pelas aguas transtornadas,
Sentindo-se morrer, cortam o rumor do pandemonio
Quaes inuteis lamentações, quaes estolidas imprecações
Ante a colera impassivel e implacavel dos elementos desaçaimados.

Por sobre esse conflicto desproporcionado, tripudia o vento,
Um vento selvagem, protervo, furioso, medonho,
Como se todos os ventos que varrem os mares e os continentes
Acorressem a uma convocação extranha.
Arvores erradicadas, feitas instrumentos de devastação,
Voam, arrastam-se, rolam com fragor.
Lividos relampagos, como reflexos de invisiveis cirios bruxoleantes,
Clareiam, a espaços, espectralmente, o scenario da terrifica batalha.
E o estrondo dos trovões communica um tremulo terror,
Uma crispação fugaz e dolorosa à superficie da terra,
Dessa pobre terra esborcinada, retalhada, esbarrondada.

Por vezes, um estalo prolongado e lugubre,
Como uma exclamação de panica surpresa,
E como se fôra a voz rasgada e secca da ignorada dor dos seres inanimados,
Annuncia ter sido ferido de morte um herculeo guerreiro,
Que assistia e dominava, imperterrito, a peleja desordenada:
Um cyclope vegetal, mais alto que um templo e mais gosso que uma torre,
Vacilla, crepitando, na escuridão e cae de borco, esmagadoramente,
Abraçando o solo com desespero, num baque immane,
Seguido de rumor surdo e confuso de um desmoronamento
....................................................................................................................

N.C. O texto parece incompleto
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ESPERANÇA

Não te entristeças.

Os súbitos e inefáveis encontros com a poesia que logo se interrompem para nunca 
mais...

As manifestações de beleza que se dissolvem antes que as possa colher...

Os surtos de inspiração que jazem malogrados...

Os impulsos de criação que não se completam...

A doce emoção que não se renovará mais

E que emanou daquele evanescente instante de intimidade com o mistério...

O contacto que retomamos um dia com a pureza e a inocência mas rápido se desfaz...

A impressentida ternura que ficou sem objeto...

A bondade que desabrochou dentro de nós como uma flor invisível e de inacessível perfume...

Ah! todos esses reflexos de luz que o mundo ignorou e que parecem perdidos,





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ORAÇÕES



Perorando o discurso proferido na reunião do Definitório realizada no dia 16 de julho de 1946, após o soleníssimo Pontifical de Sua Excia. Revma. D. Helvecio Gomes de Oliveira, em comemoração do Bicentenário da Veneravel e Arquiepiscopal Ordem Terceira de N. S. do Carmo, ergueu o irmão definidor Dr. Belisário Leite de Andrade Neto, com religiosa unção, a comovida prece que abaixo vai impressa e foi reproduzida na ata daquela magna sessão por determinação de Sua Excia. Revma, que a aprovou e não duvidaria em conceder 100 dias de indulgências a todos os que a recitarem com piedosa atenção:


ORAÇÃO À VIRGEM DO CARMELO

Santíssima Virgem do Carmelo! Do fundo de nossa miséria e do abismo da nossa iniquidade, endurecidos pelo egoismo e manchados pelo pecado, transformados em uma chaga viva da cabeça aos pés, não obstante e por isso mesmo apelamos para vossa poderosíssima intercessão.

Nós repudiamos a paternidade de Deus e desfiguramos a sua imagem e semelhança estampada em nós. Não guardamos a sua palavra e nos rebelamos contra a sua doutrina. Provocamos a sua ira, que se ainda não se desencadeou sobre nós é porque Ele é paciente e tem a eternidade para os homens recompensar ou castigar: "patiens, quia aeternus". Tentamos e traímos, insultamos e matamos todos os dias o vosso Filho, ó Piedosíssima Virgem, e cada um de nós mereceria ouvir aquela palavra terrível - "bonum erat ei non natus fuisset homo ille" - melhor fora para esse homem que não houvesse nascido - aquela palavra terrível que caiu sobre Judas como uma implacável maldição e uma inexorável condenação. Não poderíamos clamar como atrevidamente o fez o salmista, dirigindo-se a Deus: "quare faciem tuam avertis"?  - por que nos volta a tua face? pois nós é que repelimos a sua face amorosamente inclinada sobre nós. Mas vós, que sois o refúgio dos pecadores e a consoladora dos aflitos, protegei-nos, Senhora, estendei o vosso manto sobre as nossas cabeças e aplacai a cólera do Senhor.

A nossa fraqueza não tem medida e a nossa necessidade não tem limite. Afundamos na ignomínia e no opróbrio e estamos cada vez mais insatisfeitos e conturbados, pois o pecado é um aguilhão e na consciência que se afasta de Deus a tristeza e a angústia fazem a sua morada. Precisamos do vosso amparo para que a nossa perda não seja irremediável, para que a nossa ruína não seja definitiva.

No dia de hoje, ó Virgem, que possuistes e possuís a santidade em grau superlativo, no dia de hoje, consagrado à vossa invocação, dai que nos arrastemos até a vossa augusta presença, cobertos embora com os andrajos da nossa indigência, para vos suplicar pelos carmelitanos mortos, cujas almas padecentes vos encomendamos para que as leveis perante o Eterno Pai, pelos carmelitanos vivos, os justos para que perseverem e os pecadores para que dêem aos Céus aquela alegria que não dão cem justos que perseveraram; pela nossa estremecida Pátria para que ela não seja infiel às suas origens, prospere à sombra da Cruz, coloque-se entre as primeiras nações cristãs devido à sua piedade, à pureza de seus costumes, ao seu amor ao trabalho e à sua dedicação à justiça e do seio do seu povo saiam aquelas almas ardentes e eleitas, teólogos e doutores da Igreja, místicos e santos, estrelas do bem e da virtude, cumes da sabedoria e da perfeição moral; para vos suplicar por essas terras outrora risonhas, laboriosas e florescentes e hoje desorganizadas, empobrecidas e devastadas pela guerra, para vos suplicar, em suma, pela humanidade esfomeada, pois que em numerosos recantos do globo está faltando tudo e não apenas aquele mínimo indispensável à própria prática da virtude.

Virgem Imaculada, fazei com que se restabeleça um pouco de ordem nos espíritos e nas relações humanas, a fim de que nos entendamos mais e nos hostilizemos menos e ao mundo possa voltar aquela margem de estabilidade e de segurança sem a qual a vida é impossível.

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Oração para ser recitada por um aluno do Grupo "João dos Santos"



VIRGEM DO PILAR!


Aceitai a prece da infância, a prece da pureza e da inocência. O Vosso Filho atraiu as crianças junto a Si e por vosso intermédio, pois vós sois a via segura, queremos aproximar-nos d'Ele. Fazei com que até ao Menino Jesus cheguem as nossas palavras e, mais do que as nossas palavras, os sentimentos que não sabemos expressar e as súplicas que não sabemos formular. Vós que tudo podeis porque tudo obtendes da Santíssima Trindade, que vos coroou e vos fez rainha do céu, volvei o vosso olhar para estes pequeninos que aqui estão, cheios de ternura e de encantamento, a fim de vos homenagear, a fim de, em sua linguagem ingênua e espontânea, colorida e pitoresca, celebrar as vossas sublimes virtudes e incomparáveis méritos, cantando os vossos louvores  e as vossas glórias.

Precisamos de vossa infalível proteção e de vosso maternal carinho para que possamos continuar amigos do Menino Jesus, sem nunca ofendê-Lo ou entristecê-Lo. Sabemos que somos também vossos filhos e que nunca haveis de nos esquecer, mesmo que, por fraqueza ou por maldade, deixássemos um dia de nos lembrar de vós. Não permitais, entretanto, que sejamos ingratos para com o vosso Jesus e para convosco. Preservai-nos para que, com o tempo, o nosso coração não se endureça e a nossa alma não fique fechada e sombria. Tntercedei para que não percamos jamais os dons da infância, ante cujos olhos maravilhados a criação se entremostra com o esplendor sem mácula do primeiro dia.

Abençoai os nossos bons propósitos para que perseverem e frutifiquem e velai pelos nossos pais, pelos nossos irmãos, pelas nossas mestras, por esta cidade de que sois a padroeira e pela nossa Pátria.

Recebei a oferenda dos nossos cândidos votos e reinai sempre em nossa vida.


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CARTAS




NOTA DO COMPILADOR


É de formidável importância, para melhor compreensão do imaginário de qualquer artista, a sua correspondência, se tornada pública. Seja com outros artistas, com amigos, com familiares.


No caso de Belisário, que sempre apresentou um temperamento reservadíssimo e dificuldade em externar emoções e sentimentos, o segmento epistolar de sua obra, além do grande valor literário, reveste-se  de especial significado: nas suas cartas iremos encontrá-lo surpreendentemente extrovertido e afetuoso. 


Também a correspondência de Belisário como destinatário é significativa, atestando o respeito, a admiração e o afeto que por ele nutriam inúmeros amigos, familiares e personalidades públicas. 


Belisário revela-se, através de sua correspondência, um ser humano atento e sensível aos fatos à sua volta, um amigo dedicado, um marido amoroso, um pai afetuoso. São sentimentos que se mantinham pouco perceptíveis no trato cotidiano e que muitas vezes irrompem  de modo comovente na sua escrita epistolar.       

A.O.C.L.A.
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 RONDÔNIA 


"Venho congratular-me com o ilustre patrício pelo magnífico parecer que emitiu a respeito da nova denominação do Território de Rondônia, tecendo um hino em homenagem ao Marechal Rondon. Terei prazer em fazer consta dos anais da Câmara esse seu brilhante trabalho. Saudações. Coronel Joaquim Rondon, Deputado Federal". 


N.C. Telegrama recebido por Belisário em de 19 de março de 1956


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 CARTA A SUA FILHA, ÂNGELA                       N.C.




São João Del Rei, 19 de fevereiro de 1971 


Angeletinha, Meu Bem


Embora estejamos sentindo imensamente a sua falta, ficamos plenamente consolados e até felizes, quando recebemos os seus cartões, que nos dizem da alegria, do encanto, do sonho que esta viagem está sendo para você.


Aproveite-a bem, na observação do ambiente em que vivem e dos costumes que praticam outros povos. Aproveite-a bem, na contemplação atenta e lúcida das paisagens, dos cenários, dos monumentos quer aparecem como testemunhos ou marcos  de uma civilização que, apesar dos seus erros e dos seus desvios, trouxe uma contribuição positiva para que o homem saiba em que consiste a sua dignidade, qual seja o seu destino e onde estão os perigos e limitações que constantemente o ameaçam, civilização que está longe de se esgotar ou de se exaurir e cuja fonte ou matriz permanece na Europa. Aproveite-a bem, esta viagem, para se deixar envolver e penetrar pela alegria duradoura, luminosa e profunda que nos traz o contato direto dos tesouros de arte e das criações de beleza que nos foram legados em épocas assinaladas por notáveis surtos de refinamento e cultura. Aproveite-a bem para armazenar gratas recordações que lhes sejam fáceis evocar como consolo, refúgio e inspiração sempre que o prosaísmo da existência quotidiana se tornar opressivo. Aproveite-a bem, para aprender que a vida não é um espetáculo monótono e enfadonho ou sem sentido e caótico ou transitório e evanescente, mas uma contínua revelação e um dom pelo qual devemos agradecer a Deus a cada instante.


Sua mãe lhe tem mandado completa reportagem, com fidelidade e minúcia, de tudo que ocorreu por aqui e, por isso, eu me dispenso de lhe transmitir aquelas notícias pelas quais você deve andar sedenta.


Como aquele Monsieur Jourdain, que fazia prosa sem o saber, sua mãe também parece fazer romance sem o saber, pois, sem nunca talvez ter ouvido falar nisso, ela segue instintivamente o conselho do mestre de "La Chartreuse de Parme" e de "Le Rouge e Le Noir", Sthendal para quem  o romance devia ser como um espêlho que, conduzido estrada afora, fosse refletindo com fidelidade as imagens que viesse a recolher. Sua mãe, com efeito, nas longas e frequentes epístolas que lhe manda, elabora exaustivas crônicas e intermináveis reportagens, em que ela parece transportar e dominar um largo espêlho que capta e mostra tudo o que se contém na paisagem circundante, inclusive o que passaria despercebido a olhos menos curiosos, atentos e perspicazes, como os meus. Não posso competir com ela nesse terreno (como em nenhum outro, aliás, pois reconheço humildemente minha total inferioridade), nesse terreno, dizia eu, em que a sua arte é inimitável e em que eu ser-lhe-ia apenas, quando muito, um éco perdido, murcho, inaudível. Mas há uma cousa em que eu posso competir com ela e em que às vezes penso até que a suplanto: na falta que ela diz que você lhe faz e na saudade que ela diz sentir da sua presença, pois você me faz a mesma falta e a sua ausência me faz curtir a mesma saudade.


Bem, minha queridinha: escrevi, escrevi e não disse nada... É sempre assim quando se tem um mundo de coisas indizíveis a exprimir: "heard melodies are sweet, but those unheard melodies are sweeter", exclamou (cito de memória êsse verso e, por isso, não respondo nem pela fidelidade nem pela correção do texto em inglês) o autor da "Ode For A Grecian Urn". Mas você verá, ao desembarcar aqui, êsse mundo de coisas indizíveis num úmido olhar, numa embargada voz e num passo mais incerto ou trôpego do que o uso forçado da muleta explicaria.

Deu a a abençôe e proteja, mantendo-a sempre temente a Êle e sempre afeiçoada ao talvez canhestro e secarrão, mas sempre dedicado

Papai


N.C 1. Preservamos o texto de acordo com as normas anteriores à reforma ortográfica de 1971. Assim, o extinto acento diferencial, por exemplo, é mantido.
N.C. 2. Ângela é hoje Promotora de Justiça no Rio de Janeiro
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